quinta-feira, 4 de agosto de 2011

A Estamira das Estamiras se foi


Semana passada uma amiga colocou no Facebook a seguinte mensagem: Estamira morreu. Fiquei chocada na hora, mas não conseguia me lembrar exatamente o porquê. Pelo filme, claro, mas não conseguia me lembrar do enredo dele, apenas que tinha me emocionado.

Ele, junto com uns três outros documentários, foram essenciais para que concluíssemos o nosso. Dei um Google na expectativa de confirmar a informação e ainda me espantei com a causa da morte: falta de atendimento médico. Fiquei surpresa pela minha surpresa. Soube também a data exata da morte, na quinta-feira desta mesma semana. Como é que ninguém noticiou? Ou foi falha minha não ter encontrado?

Tive uma leve sensação de alívio pela mídia não ter dado destaque à morte dela. Não pela relevância, já que a coisa mais difícil de se encontrar é alguém que tenha assistido. Mas alívio por não ter ficado entupida de notícias repetidas, várias interpretações e achismos da parte de quem pega carona no assunto.

Com tudo isso, tentei relembrar do filme e não consegui, mas neste momento, estou na frente da TV, assistindo mais uma vez depois de três anos. Ela é a personagem mais sã do que podemos chamar de realidade. Seus devaneios são completamente compreensíveis e tocantes em todos os sentidos.

Você perdoa os palavrões, você perdoa as ofensas à família, a discussão com o neto, você perdoa tudo, porque não existe meios de entender ou ordenar a dor que reflete o rosto dessa mulher. Não só a dor, mas o amor da filha, que mesmo sendo poupada daquela vida pela escolha do irmão, daria tudo para ter vivido ao lado da mãe. Um depoimento honesto, confuso, que não consegue decidir, e nem esclarecer, se foi melhor viver longe ou perto dela.

Um amor incompreendido, se relatado por outros, mas tocante para qualquer pessoa que tenha ouvido da boca dela. Depois de estupros, hospitais, manicômio, e tanta raiva de Deus, a aparente calmaria do seu lar, o lixão. Ela conseguiu se encontrar. Mas não no mundo, mas em si mesma, no seu mundo.

Louca, possuída, ignorante? Não creio. Prefiro acreditar na lucidez de uma sofredora. O mais lúcida possível quanto alguém possa ser com a sorte que a vida lhe reservou. Na sua revolta contra Deus, só penso em como manter a fé quando parece que até mesmo Deus lhe virou as costas.

Um documentário impressionante. A percepção irracional dela beira ao equilíbrio. Que força é essa que a faz seguir em frente, acordar todos os dias? Já apanhou até de pau para acreditar em Deus, mas continuou fugindo. De Deus. Aquele Deus, como ela mesma diz, criado pelo homem.

Eu comecei a assistir novamente, mas agora, pela metade. Não li nada, não quis relembrar. Apenas tentar entender um pouco mais desse roteiro louco que me fez repensar a vida por um bom tempo. E hoje sinto um pouco mais a sua morte, porque, infelizmente, ela não conseguiu aguentar. Ela não conseguiu provar que os médicos estavam errados mais uma vez, querendo apenas dopá-la.

Dessa vez, numa quinta feira, 28 de julho, não deu tempo da catadora de lixo se encontrar com nenhum deles, e mais uma vez, um ser humano morreu por falta de atendimento médico. Uma, em meio a tantas Estamiras que morrem todos os dias neste nosso país.

Agora, finalmente, ela deve acertar as contas com Deus. Ou se deliciar com o diabo. Seja lá como ou com quem for este encontro, não tem como negar que Estamira foi única. Ela, sim, foi genial.